
Como nossos descendentes lerão a respeito de nós, quando procurarem informações
sobre esta que já é considerada uma das maiores pragas de todos os tempos? Que
julgamentos serão formados, que entendimentos serão estabelecidos? Material já
existe às fartas: ficção e realidade se encontram nestes dias que teimam em não
acabar. Enquanto esperamos, os jornais guardam registros de grandes epidemias e a
literatura encena os dramas, um dia vividos, por causa das pestes.
Os jornais do início do século passado nos revelam que, no Brasil, houve um surto de
febre amarela, que remonta a 1685; que houve, também, uma grave peste que se
instalou na então província de Pernambuco, em 1855, e a tão famosa gripe espanhola,
surgida em 1918, causada por um vírus influenza, a qual vitimou o então presidente
do Brasil, Rodrigues Alves, que morreu em decorrência da doença, em 1919. De 1970
a 1974, uma escondida epidemia de meningite fez diversas vítimas em São Paulo e,
mais recentemente, foram registrados surtos menores da chamada gripe suína e
H1N1.
Quanto à literatura, que opera por verossimilhança, um dos clássicos mais lembrados
nos últimos tempos é do argelino Albert Camus, cuja obra universal, intitulada A peste,
tem muito a nos dizer sobre os mesmos sentimentos aflitivos e a solidariedade
descoberta pelos trabalhadores da cidade de Oran, na Argélia. “Já não havia destinos
individuais, mas uma história coletiva que era a peste e sentimentos compartilhados
por todos”. E a lição é esta: que aqui a praga do coronavírus também nos abandone,
assim como, naquele lugar, um dia os ratos, inexplicavelmente, deixaram os
moradores em paz.
Outra obra – Decamerão - de Giovanni Boccaccio mimetiza os efeitos da praga em
Florença, na Itália do século XIV, quando a peste negra varria as cidades da Europa.
Um compilado de histórias surreais é criado por um grupo de jovens, que se exilou
para fugir daquele cenário avassalador. Chama a atenção, no livro, a descrição da
peste, que, guardadas as devidas proporções, mostra-nos uma realidade que já nos
parece familiar: “(...) E, dentre esses que tinham tão variadas opiniões, embora não
morressem todos, também nem todos se salvavam: ao contrário, adoeciam muitos
que pensavam de modos diversos, em todos os lugares; e esses doentes, que,
quando estavam sãos, tinham dado exemplo àqueles que agora continuavam
sãos(...).”
Machado de Assis, por sua vez, inscrito no panteão mundial dos melhores escritores
de todos os tempos, comenta, no romance A mão e a luva: “a Corte divertia-se, apesar
dos recentes estragos do cólera; bailava-se, cantava-se, ia-se ao teatro” e, mais
adiante, nomeia a praga, quando justifica o receio de alguns em viajar: “era o perigo
de afrontar o cólera-morbus que por aquele tempo percorria alguns pontos do interior”.
O Bruxo do Cosme Velho voltaria a fazer citações às doenças pestilentas em outros
momentos. Os conhecedores de suas obras certamente hão de lembrar. Mas, aos que
ainda não as leram, recomendo que aproveitem a quarentena para conhecê-las.
Outro exemplo da literatura, tão marcante quanto os já citados, é O amor nos tempos
do cólera, escrito pelo colombiano Gabriel García Marquez. É a narrativa do amor
guardado, por mais de 50 anos, de Florentizo Ariza e Fermina Daza, o qual refloresce
num navio, em meio à epidemia. Outro ainda, levado às telas por nosso conterrâneo
Fernando Meirelles, é Ensaio sobre a cegueira, obra de José Saramago, que nos
atormenta com a ideia do sofrimento de alguém com visão em plena terra de cegos.
Era uma cegueira coletiva que, insidiosamente, instalava-se e, da mesma forma,
esvaía-se. Mas as lições deixadas na alma dos atingidos, essas perdurariam.
Sem dúvida nenhuma, os relatos que herdamos nos servem muito de lenitivo, a
despeito do número de mortos, das dores, do medo, da crise econômica e dos novos
modos de existência a que temos, forçosamente, que nos adaptar. Escrever é uma
das formas de reinventar e antecipar o futuro. Que estes dias reais, agora vividos, logo
sejam transpostos da realidade para a ficção. E que, assim como houve o cessar das
pestes que inspiraram os cenários de terror das obras literárias aqui comentadas,
nosso coração se anime no aguardo do fim destes dias igualmente tenebrosos.
Por Natalino Salgado Filho
Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, de Letras do MA e da
AMM.
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